A ENGENHARIA JURÍDICA
MIGUEL REALE
A
Ciência do Direito tem muito a ganhar no que se refere à distinção entre o
saber tradicional do jurista, a partir da norma jurídica já posta e
predeterminada, e, como tal é dita positiva,
e o saber jurídico em função da norma jurídica “in fieri”, isto é, como projeto
de uma “estrutura normativa” que se quer estabelecer para atender às
necessidades de dada situação social e econômica.
Foi
por volta de 1968 que, em comunicação apresentada ao “Congresso Internacional de
Filosofia” realizado em Viena, ocorreu-me a idéia de estudar o direito à luz de
uma “teoria dos modelos jurídicos”, trabalho este inserto depois em meu livro Estudos de Filosofia e Ciência do Direito,
Edição Saraiva, 1978.
Observo
que não foi por mera coincidência que, no mesmo ano de 1968, publiquei um de
meus livros fundamentais, que iria servir de ponto de partida para toda a minha
Teoria Geral do Direito. Refiro-me a O
Direito como Experiência, no qual demonstro a necessidade de estudar a
realidade jurídica mediante os conceitos de estrutura
e de modelo.
Passei
a ver o direito como uma “estrutura normativa”, ou seja, como um fato ou
complexo de fatos interligados isomorficamente por um sistema de regras
verticalizado no sentido da realização dos fins ou valores exigidos pela idéia
de justiça, não de maneira abstrata, mas em concreta funcionalidade histórica
com a pessoa humana. Daí a noção de “sujeito de direito” como um ser situado em
um conjunto de circunstâncias.
Ora,
é manifesta a diferença entre a visão do direito como projeção de um quadro de
normas positivas, cujo significado cabe interpretar, e a sua compreensão quando
se trata de construir “ex novo” um sistema de normas destinado a reger
determinado espaço social. Esta segunda visão é a do legislador que quer
alcançar determinados objetivos culturais, sociais, científicos, artísticos,
etc., agindo como o engenheiro que está construindo um prédio segundo um modelo
ou projeto. Há, em suma, uma “engenharia jurídica” em todo “projeto de lei”, partindo
o legislador dos mandamentos vigentes para implantar algo de novo no
ordenamento jurídico.
Pois
bem, eu já tinha a concepção do direito supra exposta quando em 1969, na
presidência do general Costa e Silva, fui incumbido de elaborar dois projetos
de lei, um sobre um novo Código Civil, e outro sobre a Usina de Itaipú.
No
primeiro caso, tratava-se da terceira tentativa de atualizar o Código de 1916,
sem lograr êxito, não obstante os altos méritos dos juristas contratados para tal
fim .
Convidado
pelo então Ministro da Justiça, Luíz Antonio da Gama e Silva, o primeiro
cuidado que tive foi indagar das razões do insucesso de meus antecessores.
Convenci-me que o obstáculo insuperável consistia na infeliz idéia de dividir a
Lei Civil em vigor para instaurar, ao lado de um amplo Código de Direito das
Obrigações, um mirrado projeto de Código Civil, decepado de sua Parte Geral,
obra imperecível de Teixeira de Freitas e de Clovis Bevilaqua.
Resolvi,
assim, manter, quanto possível, a estrutura e as prescrições do Código vigente,
acrescentando-lhe, porém, uma parte nova sobre o Direito de Empresa, dado o
obsoletismo do Código Comercial de 1850, que já acarretara a “unidade das obrigações” civis e comerciais
na jurisprudência nacional, por se aplicar sempre o Código Civil em ambas as
hipóteses.
Embora
tentado pela idéia da “unificação do Direito Privado”, compreendi que era
necessário manter a autonomia do Direito Comercial, mas injetando-lhe a
idéia-força da livre empresa, visto não ser mais o comércio a atividade
econômica dominante, em concorrência com as poderosas criações das indústrias e
dos serviços de comunicação.
Embora
não se tenha feito qualquer referência a esse ponto, o certo é que o modelo
final do novo Código Civil foi o originariamente por mim concebido, em 1969,
com uma Parte Geral e cinco Livros Especiais, sem o que, penso eu, a reforma
não teria vingado.
A
segunda questão a que me dediquei com afinco, a cavaleiro dos anos 1969/1970,
foi a pertinente à Usina de ITAIPÚ, quando o Ministro das Relações Exteriores,
o embaixador Gibson Barbosa, submeteu a meu exame um projeto de sociedade
anônima com que se procurava resolver o delicado problema da coexistência das
soberanias do Brasil e do Paraguai no citado empreendimento.
Pareceu-me
impossível, em tal conjuntura, recorrer ao modelo da sociedade de economia
mista, visto como esta se vincula necessariamente ao Governo do País, e nós
tínhamos dois em jogo. Daí a idéia que tive de
instituir-se uma “empresa binacional”,
dotada de corpo legislativo próprio, o seu Conselho de Administração, com
paridade de representantes brasileiros e paraguaios, transformando-se em
“questão diplomática” qualquer impasse que pudesse surgir no seio do referido
Conselho.
Mais
uma vez a idéia de estrutura e de modelo vinha fornecer a solução criada pela
iniciativa de implantar uma gigantesca usina no rio Paraná, na divisa de duas
nações, ambas soberanas.
A
terceira experiência legislativa em que me vi envolvido foi na presidência de
João Batista Figueiredo, quando meu saudoso amigo Leitão de Abreu, então Chefe
da Casa Civil, pediu minha colaboração
na feitura de uma lei que permitisse a utilização das terras devolutas em um
plano de reforma agrária. Refiro-me à
lei 6.969, de 10 de dezembro de 1981, que dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais.
Reformando-se
o Código Civil, ficou então estabelecido que a usucapião de imóvel abandonado
dar-se-ia no prazo de dez anos, quando localizado em zona urbana, e em três
anos, se localizado em zona rural.
Graças
a essa corajosa deliberação foi imenso o número de processos relativos a terras
devolutas, tornando-se proprietários milhares de possuidores de área
correspondente ao módulo rural, gozando eles de assistência judiciária
gratuita. Dava-se, desse modo, um passo gigantesco no sentido da reforma
agrária há tanto tempo reclamada.
Infelizmente, a Constituição de 1988 veio proibir a aquisição de imóvel
público por usucapião (Art. 191).
1º/03/2003